Quem quiser entender a resistência de brasileiros e especialmente das
brasileiras contra o golpe de abril-maio deve prestar atenção ao
movimento de mulheres. Elas podem ser vistas em toda parte onde se
questiona a posse de um governo que assumiu o Planalto sem legitimidade.
Estão à frente dos grandes atos de protesto -- muitos de natureza
essencialmente espontânea -- realizados até aqui, que surpreenderam pelo
volume, pela regularidade e pela ressonância política imediata. O mais
importante ocorreu domingo, na Paulista. Novos atos virão.
"A reação das mulheres não deveria surpreender ninguém," afirma a
sociólogo Eleonora Menicucci, titular da Secretaria de Políticas para a
Mulher Brasileira entre 2012 e maio de 2016. "Só quem acredita no país
mostrado pela mídia monopolizada não tomou conhecimento dos progressos
conseguimos nos últimos anos pelas mulheres." (Leia a integra da
entrevista mais adiante).
Expressando uma rejeição que vem de camadas profundas e muitas vezes
invisíveis da sociedade brasileira, essas manifestações explicam uma
ridícula coreografia de Brasília nos últimos dias. Michel Temer e seus
auxiliares têm sido obrigados a correr atrás de toda e qualquer
personalidade feminina disposta a assumir um posto de responsabilidade
no governo porque é preciso disfarçar uma realidade política visível e
vergonhosa. A composição de forças que assumiu o governo na quinta-feira
da semana passada é uma tentativa de volta ao passado de uma sociedade
conservadora e patriarcal, onde a opressão da mulher é o dado natural de
uma paisagem que celebra um ideal feminino ("bela, recatada, do lar",
como escreveu a VEJA para definir Marcela Temer) tão internalizado que
seus defensores sequer se dão conta de seu caráter anti-histórico.
Como é sabido, no Brasil as mulheres representam 52% da população e
sempre habitaram os degraus mais baixos e vulneráveis da vida social, a
começar pelo mercado de trabalho. Isso explica a reação imediata diante
do golpe, típica de quem tem mais perder e sabe que será atingida em
primeiro lugar.
Quem participou dos protestos que denunciavam que impeachment sem crime é golpe não deixa de recordar a emoção genuína com que se gritava neste país eu tenho fé, porque é governado por mulher,
bordão que era muito mais do que uma celebração do governo Dilma, com
quem muitas possuem uma identificação única e fácil de compreender,
mesmo quando mantém críticas e restrições a seu governo. Expressava
também a celebração de mudanças que marcaram a última década e de seu
próprio fortalecimento, um progresso que se pensava não ter retorno
possível -- mas que agora se encontra sob ameaça direta, da qual um
ministério sem mulheres é visto não apenas como símbolo, o que já é
grave, mas como meta de trabalho de um governo constituído com apoio
festivo de campeões do preconceito e da dominação feminina. A seguir, a
entrevista de Eleonora Menicucci:
247 -- Os movimentos de mulheres estão a frente da maioria dos protestos contra o governo Temer. Este fato é surpreendente?
ELEONORA MENICUCCI - Pelo contrário. É previsível. As mulheres,
especialmente as mais pobres, foram as grandes beneficiárias das
políticas econômicas e sociais inauguradas pelo governo Lula e
prosseguidas, em alguns casos até com mais intensidade, pelo governo
Dilma. É natural que se sintam na obrigação de reagir, diante de um
governo que é uma caricatura -- infelizmente real -- de tudo aquilo que
existe de mais reacionário em relação à mulher: sexista, machista,
fundamentalista, fascista e capitalista. Só pode estar surpreso com essa
reação das mulheres -- uma coisa emocionante -- quem acredita que vive
no país mostrado pela mídia monopolizada, que nunca se preocupou em
descrever o que acontece na vida real da maioria dos brasileiros e
tratava de esconder os progressos alcançados. Estes podem dizer que não
entendem por que as mulheres estão indo pra rua. Foram enganados. Os
outros entendem muito bem. As mulheres protestam porque sabem o risco
que estão correndo.
247 -- Que risco é esse?
ELEONORA -- O governo Temer tem uma visão fascista da cultura
feminina. É integrado por políticos que querem rever conquistas já
asseguradas e criminalizar direitos adquiridos.
247 -- Como é isso?
ELEONORA -- Muitas vezes, o fascismo aparece acobertada pelo
fundamentalismo religioso, que procura impor sua visão de mundo sobre o
conjunto da sociedade, ignorando que vivemos num país onde o Estado é
laico e ninguém pode ser obrigado a submeter-se a crenças religiosas. O
fascismo, que é uma manifestação absurda da dificuldade aceitar o outro e
conviver com aquilo que é diferente, tem uma visão clara do papel da
mulher na sociedade. Deveria casar-se, ser boa esposa, cuidar dos
filhos e ficar em casa. Era uma escrava que ainda tinha obrigação de
ser ou pelo menos fingir que era feliz. A responsabilidade doméstica não
era opção, um direito de escolha, que neste caso é legítimo. Era
obrigação de quem não tem direito algum. Fora isso, os papéis positivos
reservados às mulheres envolviam atividades de quem têm vida dupla:
amantes e espiãs. E só.
247 -- A identificação das mulheres com Dilma é real,
especialmente as mais pobres e exploradas. A situação lembra um pouco a
identidade de classe entre os trabalhadores -- inclusive mulheres -- e
Lula?
ELEONORA -- Há diferenças e semelhanças. Lula tem um papel histórico
único para o conjunto dos brasileiros. Tem uma identidade de classe
importantíssima numa sociedade onde os interesses dos mais pobres sempre
foram diluídos para que fossem melhor explorados e jamais
compreendessem que poderiam ter uma vida melhor desde que se
organizassem para se unir e se defender. Este lugar de Lula é único. Mas
eu acho que Dilma tem uma liderança que em certa medida é mais ampla.
247 -- Como assim?
ELEONORA -- Por causa da condição feminina, sua liderança tem
transversalidade. Um grande número de mulheres de classe média, de
classe média alta e até mais ricas é capaz de reconhecer e valorizar o
papel de Dilma na defesa de um ponto essencial da democracia, que é a
igualdade de gêneros. Mesmo criticando o governo e até discordando de
pontos fundamentais, reconhecem o lugar de Dilma. Como já entenderam as
feministas, as mulheres desenvolvem um tipo de solidariedade entre si, a
sororidade, que ajuda a explicar uma empatia que pode ir além da
identidade política e das ideologias.
247 -- Você esteve com a Dilma naquele encontro com mulheres,
em abril, logo depois que a Câmara de Deputados aprovou a abertura do
processo de impeachment. Como foi aquele momento?
ELEONORA -- Foi inesquecível. Fizemos uma grande manifestação de
mulheres no Planalto, em apoio a Dilma. Nós queríamos subir para o
gabinete. Mas só quinze foram autorizadas. Compareceram lideranças
importantes, que queriam se solidarizar, falar de tudo, perguntaram
tudo. Lembrando a luta contra a ditadura, uma delas perguntou o que a
Dilma tinha achado da declaração do Jair Bolsonaro, em homenagem ao
coronel Ustra. Em vez de responder, a Dilma disse: "Isso é melhor vocês
perguntarem para a Eleonora, que sabe melhor do que eu."
247 -- E o que você sabe?
ELEONORA -- Após minha prisão, durante a ditadura, fui torturada na
frente do Ustra, por homens que obedeciam ao comando dele. Vi uma morte
na tortura. Estava sentada na cadeira do dragão, recebendo choques
elétricos, nua, enquanto eles espancavam o Luiz Eduardo da Rocha
Merlino, jornalista, pendurado no pau de arara. O Merlino, que era da
mesma organização que eu, tinha uma grande ferida na perna. Sofreu uma
trombose e acabou sendo levado para a cela e depois para um hospital,
onde morreu. Eu contava isso e nós chorávamos, a Dilma chorava, todas
choravam. De repente, a presidente abriu a janela para ver a
manifestação lá fora e resolveu descer. Fomos todas juntas.
247 -- Você denunciou o Ustra pela morte do Merlino?
ELEONORA -- Fui a única testemunha em dois processos. Em ambos, a
culpa dele ficou demonstrada. Mas ele não foi a julgamento porque a
Justiça considerou que estava protegido pela anistia. O discurso do
Bolsonaro, um dos lideres do golpe, representa isso: impunidade para o
crime de tortura, que a Constituição considera imprescritível e
inafiançável.
247 -- É um fato sabido que os programas sociais, a começar
pelo Bolsa Família, foram um fator positivo para os direitos das
mulheres. Qual o papel específico da Dilma em programas herdados de
Lula?
ELEONORA -- Eles foram aperfeiçoados, o que é natural, porque
representam um aprendizado que vem com o tempo e a experiência. Antes,
os cartões de despesa do Bolsa Família eram destinados às mulheres
sempre que elas exerciam o papel de chefe de família, assumindo a
responsabilidade principal. A mudança é que hoje o cartão é destinado as
mulheres em qualquer caso, o que atinge 63% das famílias. Outra
mudança importante foi no programa Minha Casa, Minha Vida. Definimos
que, em caso de separação, a casa fica com a mulher, pois é ela que tem a
guarda dos filhos. Se você olhar para o Pronatec, verá que os cursos
profissionalizantes formaram mulheres para profissões que pareciam
tipicamente masculinas, como condução de veículos pesados, mineração, e
assim por diante.
247 -- Pelo que a senhora diz, sempre que levou uma melhoria
para as camadas inferiores da sociedade, o governo encontrou uma mulher.
ELEONORA -- Sem dúvida. Uma visão convencional do programa Luz para
Todos, que ajudou a iluminar o interior remoto do Brasil, mostra que a
chegada da luz elétrica permitiu instalar geladeiras, máquina de lavar e
assim por diante. Mas o Luz para Todos também contribuiu para eliminar a
violência contra a mulher e inibiu os casos de estupro. Ao debater
violência doméstica, numa prova do ENEM, o governo permitiu que, num
único dia, 8 milhões de famílias pudessem conversar sobre um assunto
grave, mas que era tabu. Imagine a vitória cultural que isso representa.
Convém não esquecer a regulamentação do trabalho doméstico, medida
equivalente a uma segunda abolição da escravatura, numa mudança que
atingiu uma profissão basicamente feminina.
247 -- O ministro temporário da Justiça, Alexandre Moraes, fez críticas ao trabalho da Secretaria...
ELEONORA -- Essas críticas devem ser repudiadas porque partem de uma
autoridade que não sabe do que está falando. Longe de mim imaginar que
fizemos um trabalho tão perfeito que não possa ser avaliado de forma
críticas. Mas antes de tudo é preciso conhecer o assunto. Foi durante os
governos Lula-Dilma que se aprovou a Lei Maria da Penha, que é
considerada uma das três mais avançadas do mundo pela ONU. As casas da
mulher começam a se tornar uma realidade e apenas uma delas, em Campo
Grande, atendeu 56 885 casos em um ano. A casa de Brasília, atendeu 2515
casos de julho do ano passado a maio de 2016. Estão programadas outras
cinco casas, inclusive em São Paulo, que poderão proteger milhares de
vítimas da violência -- caso as metas não sejam abandonadas, como parece
ser o plano do governo Temer. O serviço ligue 180 já chegou a 16 países
e foi usado recebeu 4,8 milhões de ligações.
247 -- Mas foi em São Paulo que se criou a primeira delegacia da mulher.
ELEONORA -- Essa iniciativa foi muito importante pelo pioneirismo do
trabalho da delegada Rosemary Correa. Mas o trabalho está abandonado.
Hoje em dia, as delegacias da mulher não funcionam em fins de semana nem
em feriados. Qualquer pessoa que conhece o cotidiano das famílias sabe
que é justamente nessas ocasiões que ocorrem casos de violência.
247 -- Você concorda que o governo avançou pouco da descriminalização do aborto?
ELEONORA -- Essa é a grande dívida que deixamos para a mulher brasileira.
247 -- Como explicar isso?
ELEONORA -- Pela absoluta falta de espaço político para fazer um
debate necessário. Nós queríamos abrir uma discussão que sempre foi
difícil mas encontramos um ambiente conservador e regressivo. A
prioridade não era mais para caminhar em direção a descriminalização,
mas impedir retrocessos. Tentavam abolir o aborto em caso de
anencéfalos, já debatido e autorizado pelo Supremo. Também queriam
impedir o uso da pílula do dia seguinte, assegurada pela rede pública,
para vítimas de estupro. O autoritarismo que levou ao golpe já estava em
curso.
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