O caso Abdelmassih e a cultura do estupro

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Por Vicente Vilardaga
O caso Roger Abdelmassih é um exemplo claro de como as instituições e autoridades brasileiras têm sido historicamente permissivas em relação ao estupro e a outras formas de assédio sexual masculino.
O mecanismo geral de proteção do homem é simples: muitos machos locais estão acostumados a se impor pelo assédio, em maior ou menor grau, e, quando acontece uma crise e algum comportamento extremo vem à tona, um macho protege o outro e não deixa o crime vazar, faz que não viu, minimiza o ato ou transfere a culpa para a mulher.
Dessa forma, o ex-médico abusou de dezenas de mulheres em sua clínica, durante 20 anos, e nunca um boato prosperou ou uma denúncia contra ele no Conselho de Medicina ou na polícia se tornou pública antes de 2009, embora Abdelmassih fosse conhecido por namorar pacientes e exagerar na propaganda de seus feitos.
De um modo geral, o ex-médico pensava que suas vítimas davam motivo para serem atacadas, "jogavam o milho", como ele disse em uma das gravações feitas pela promotoria, quando foragido no Paraguai.
É um raciocínio esquisito que serve de base para a ação de estupradores e que um típico macho brasileiro consegue entender. Estupra-se nesse país desde os tempos imemoriais, quando chegaram as caravelas de Cabral, porque as mulheres "jogam o milho".
E as instituições dominadas por homens toleram esses desvios, que, até virem a público e se revelarem monstruosos sob qualquer ponto de vista, são tratados como duvidosos pelos critérios que orientam a manutenção do poder masculino. Os sistemas de controle sobre a violência sexual contra a mulher são frouxos por aqui e afrouxam ainda mais conforme a capacidade advocatícia dos acusados e a disposição da polícia de investigar o caso.
O estupro coletivo da adolescente de 16 anos em uma favela da zona oeste do Rio mostra que nosso processo civilizatório avança claudicante. A tão aclamada sensualidade dos trópicos floresce no Brasil ao lado de uma cultura perversa e orientada para a violência sexual.
Verifica-se que um comportamento selvagem de macho ressentido eclode a todo momento em áreas mais ou menos desenvolvidas do país e em todas as classes sociais para provar que o homem cordial brasileiro, seja pobre ou rico, pode demorar um segundo para se revelar um crápula.
Pior do que estuprar, porém, é dedurar. Muitas denúncias de estupro não prosperam porque os outros machos (e também mulheres) que participaram, viram ou ficaram sabendo do ato compartilham um estranho código de honra em que impera a hipocrisia e o silêncio.
É o que acontece nos trotes universitários, em especial nas melhores faculdades de medicina de São Paulo. Na USP, por exemplo, como mostrou uma comissão de sindicância interna, oito mulheres denunciaram ataques sexuais, entre 2011 e 2014, mas, segundo o Ministério Público, a diretoria da instituição não deu suporte às vítimas e deixou de "dar prosseguimento a procedimentos administrativos de apuração".
O estupro é a manifestação mais elementar da barbárie e o nível de tolerância ao ato deveria ser zero. Mas no Brasil não é bem assim, percebe-se uma certa flexibilidade. Abdelmassih só passou mais de duas décadas posando de garanhão e aprontando na sua clínica médica porque deixaram.
VICENTE VILARDAGA, 51, é jornalista e escritor. Publicou recentemente o livro "A Clínica - A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih" (ed. Record).

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