Do doutor em Filosofia Wilson Gomes, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, via Tijolaço:
Primeiro apareceram os que acusaram Lula de pecado
futuro: vai usar a morte da esposa para se fazer de vítima. Acusar
alguém de pecados ainda não cometidos é uma tentativa de fechar ao
acusado uma alternativa, de desqualificá-la de antemão: "vai doer, mas
chorar você não pode; tente, então, ficar quietinho". "Fazer-se de
vítima" é uma dessas expressões curiosas da alma brasileira, vez que
quem acusa o interlocutor de se fazer de vítima geralmente está fazendo o
papel de verdugo. O carrasco está barbarizando, mas, por favor, tenha
compostura, "não se faça de vítima".
Depois apareceram as condenações pelo "uso político do
velório". Como pode um sindicalista e político enterrar a própria esposa
com um coração de político e sindicalista? Tinha que ter havido
discrição, silêncio. Como pode um sujeito enterrar a sua companheira de
vida, cuja morte foi, no mínimo, acelerada pelo desgosto e por acusações
que, segundo ele, são injustas, berrando, esperneando, acusando? Não, o
certo era ficar quietinho ou, se fosse mesmo para fazer drama, que se
cobrisse de cinzas, batesse no peito, em lágrimas, e gritasse "mea culpa, mea maxima culpa!".
Fosse apenas questão de ser sommelier do luto alheio,
até me pareceria razoável. Afinal, o Facebook é principalmente uma
comunidade de tias velhas desaprovando as saias curtas e os
comportamentos assanhados dos outros. Mas, é mais que isso. Pode haver
um aluvião público de insultos, augúrios de morte e dor, e difamação à
sua esposa, durante duas semanas, mas Lula não pode mostrar-se ultrajado
ou ofendido, não pode desabafar do jeito que pode e sabe, não pode
espernear. Em vez do "j'accuse", o certo seria a aceitação
bovina do garrote, da dor, da perda. Em vez do sindicalista e político,
em um ambiente privado do sindicato, velando entre amigos a mãe dos seus
filhos, havia de ser um moço composto e calado. Todo mundo tem direito
de velar os seus mortos como pode e sabe, exceto Lula.
Uma parte da sociedade brasileira nunca se cansa de
mostrar a Lula o seu lugar. E de reclamar, histérica, quando ele,
impertinente, não faz o que ela quer. Tem sido assim. Lula já foi
insultado de analfabeto, nordestino, cachaceiro, ignorante e aleijado,
muito antes de ser chamado de corrupto e criminoso. A cada doutorado honoris causa de
Lula choviam ofensas e impropérios porque ele não tinha todos os dedos,
porque era uma apedeuta, porque era um peão. Qualquer motivo para
odiá-lo sempre foi bom o bastante para uma parte da sociedade.
Agora,
estamos autorizados a odiá-lo por mais uma razão: o modo como
acompanhou a agonia e como velou sua companheira. Que os cultivados me
perdoem a analogia, mas isso me lembra a acusação feita em O
Estrangeiro, de Albert Camus, ao sujeito que não conseguiu chorar e
sofrer, como aos demais parecia conveniente e apropriado, no funeral da
própria mãe: "J'accuse cet homme d'avoir enterré sa mére avec un cœur de criminel". "Eu acuso este homem de ter enterrado a sua mãe com um coração de criminoso".
No surrealismo da narrativa política brasileira, a
história se repete: Lula deve ser desprezado porque enterrou a esposa
com um coração de político e sindicalista e isso não está direito.
Voilà. Lula nunca vai aprender o seu lugar.
Não. E como disse o Chico, "Qualquer canção de dor/Não basta a um sofredor/Nem cerze um coração rasgado/Porém ainda é melhor/
Sofrer em dó menor/Do que você sofrer calado".
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