Faltando três dias para a greve
geral em defesa dos direitos dos trabalhadores, lideranças da Igreja
Católica têm multiplicado gestos que confirmam um engajamento cada vez
maior no apoio a mobilização marcada para 28 de abril. Ao lado das
palavras cuidadosas de dom Leonardo Steiner, secretário geral da CNBB,
em entrevista publicada no site da CNBB, manifestando simpatia aberta
pelas reivindicações mas sem assumir a assumir o compromisso formal de
apoio a greve, uma parcela crescente da hierarquia católica têm
contribuído para ampliar a resistência popular contra mudanças que
ameaçam direitos e conquistas históricas da população.
Na mais recente manifestação, na
tarde de ontem, as Irmãs Missionárias do Sagrado Coração de Jesus
divulgaram em São Paulo um comunicado no qual informam com todas as
letras "nossa adesão à paralização nacional a ser realizada no dia 28
de abril," em apoio às reivindicações "contra a Reforma da Previdência,
Reforma Trabalhista e o Projeto de Terceirização aprovado pela Câmara de
Deputados, " pontos que sintetizam o cada vez mais precário equilíbrio
do governo Temer. Não é só. Quem se der ao trabalho de assistir e
compartilhar os vídeos gravados por dom Anuar Battisti, arcebispo de
Maringá, dom Manoel Delson, arcebispo de Campina Grande, e dom Gilberto
Pastana, do Crato, que convocam a população a participar da greve geral
desta sexta-feira, terá oportunidade de testemunhar um momento
particular.
É preciso retornar aos livros que
relatam os momentos mais duros da resistência a ditadura militar de 1964
para encontrar um engajamento tão profundo da hierarquia católica numa
questão que ocupa o centro do debate político e exprime o difícil . No
mais tradicional evento do universo católico, as missas de domingo, a
pregação de padres contra as reformas da agenda Temer-Meirelles
tornou-se assunto obrigatório, o que têm preocupado as lideranças do
governo -- receosas da conta a ser cobrada pelo eleitorado -- como o
senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), que chegou a discutir o assunto com o
presiden
O desastrado convite levado por João
Dória ao Papa Francisco para um encontro de Sua Santidade com Temer
explica-se neste contexto. Integrado à linhagem conservadora católica
que chega a Opus Dei, adversária frontal do Papa e das mudanças que têm
promovido na Igreja, Temer dispõe de inúmeros instrumentos de
negociação e mesmo de pressão do Estado brasileiro para fazer tratativas
com o Vaticano. Já a negativa de Francisco à oferta se compreende pelo
momento político -- ainda que o sentido seja oposto. Com um
reconhecido sentido político, o papa não pretende tomar qualquer
iniciativa que possa servir de conforto a uma causa que considera
prejudicial as maiorias.
"Tenho muita experiência na luta
popular," afirma Gilberto Carvalho. Formado em círculos operários
católicos antes de se tornar uma liderança do Partido dos Trabalhadores e
ministro dos governos Lula e Dilma, ele disse ao 247 que "em tempos
recentes não me lembro da Igreja mostrar um engajamento tão pesado." Há
duas semanas, esse engajamento assumiu um caráter mais organizado. Numa
conversa que durou 40 minutos, dom Leonardo Steiner, secretário-geral da
CNBB, recebeu as principais lideranças da greve geral, num conjunto que
foi da CUT à Comlutas, o MST e o MTST, além da CTB. "A postura de dom
Leonardo foi de acolhimento," resume um dos presentes.
Na década de 1970, quando a Igreja
passou a se opor à mesma ditadura que havia ajudado a construir em 1964
através das Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade, peça
fundamental do golpe que derrubou João Goulart, a ruptura ocorreu em
função de uma prática intolerável -- a tortura e execução de presos
políticos. Foi a partir da denuncia incansável destes crimes que, numa
sequência de atos de grande coragem, dom Paulo Evaristo Arns e outras
lideranças uniram-se ao movimento operário, à luta dos estudantes e da
população carente para colocar o regime contra a parede, forçando a
porta de saída. No Brasil de 2016-2017, não se cometeu o mesmo erro de
meio século atrás.
Em tom moderado, mas com palavras
firmes, a CNBB condenou o golpe contra Dilma, já na fase de
preparativos. Em abril, logo depois que, num domingo tenebroso, a Câmara
de Deputados aprovou o afastamento da presidente, o Premio Nobre da Paz
Adolfo Perez Esquivel, uma espécie de embaixador moral do Vaticano de
Francisco, esteve no país para trazer uma mensagem. Denunciou o "golpe
branco" -- querendo dizer que, mesmo sem derramamento de sangue nem
tanques nas rua, havia ocorrido uma ruptura institucional grave e
inaceitável.
Parte da postura da hierarquia da
Igreja diante da greve geral pode ser explicada pela pequena revolução
interna que o Papa Francisco tem promovido desde que foi escolhido para o
lugar de Bento XVI. Primeiro papa com uma atuação indiscutivelmente
progressista desde o fim do pontificiado de João XXIII, encerrado em
1963, a simples escolha de Jorge Mario Bergoglio implicou num fato
relevante para o que se vê nos dias de hoje, na eterna disputa política
que também marca a vida cotidiana de padres e bispos brasileiros. Sua
candidatura foi pavimentada pela derrota acachapante da facção
ultra-conservadora do clero, que tentou suas chances com o nome de dom
Odilo Scherer, cardeal de São Paulo, descartado logo na primeira rodada.
Quatro anos depois, Francisco é
uma liderança reconhecida como poucas num mundo que não cessa de
produzir manifestações cada vez mais frequentes de desgoverno. Tem um
papel inegável, dentro e fora da Igreja, por sua capacidade de expressar
as angústias e o sofrimento daquela imensa parcela da humanidade
excluída da globalização e cotidianamente abandonada pelos profetas mais
festejados do mercado e do Estado Mínimo.
Entre muitos outros efeitos, a
presença de Francisco no Vaticano funciona como uma "cobertura moral e
eclesiástica" -- a definição é de Gilberto Carvalho -- para o
engajamento da CNBB ao lado dos sindicatos, que inclui até a assinatura
de uma nota conjunta, divulgada em 19 de abril, ao lado da OAB e do
Conselho Nacional de Economistas, fato raro em sua história. Dizendo que
a "sociedade brasileira deve estar atenta as ameaças de retrocesso," as
três entidades dão um destaque particular ao projeto de reforma da
Previdência, dizendo que "não pode ser aprovada apressadamente, nem pode
colocar os interesses do mercado financeiro e as razões de ordem
econômica acima das necessidades da população".
A causa principal desse
comportamento é interna. Envolve o desempenho ruinoso do governo Temer,
sintetizado pela implacável rejeição de 79% dos brasileiros. Mais uma
vez na visão de Gilberto Carvalho, é "a radicalidade das mudanças que
Temer quer impor " que explica o engajamento firme da CNBB. Mesmo num
país já desigual e com tantas carências como o Brasil, maioria da
população corre o risco de ser submetidas a degraus ainda mais dolorosos
de sofrimento e incertezas.
Nesta situação, é compreensível que,
além de abrir as portas das igrejas e diversas entidades religiosas
para o descontentamento e as reivindicações populares, os próprios
líderes católicos tenham assumido a tarefa de convocar as mobilizações.
Nesse caminho, em seu vídeo o arcebispo de Maringá Anuar Battisti apela à
população para "participar do dia 28 e gritar pela dignidade." Diz que
os fiéis devem colocar o ato "na agenda e não deixar de erguer sua voz
para contestar." Caso contrário, acrescenta, "o prejuízo ficará para
todos."
Já Dom Manoel Delson, de Campina
Grande, usa o vídeo para fazer a discussão de fundo sobre a Previdência.
Não só questiona a necessidade de mudanças no sistema público de
aposentadorias. Ainda recorda que, caso fosse mesmo preciso fazer
alterações na Previdência, seria preciso atingir os benefícios de quem
ganha altos salários e embolsa pensões integrais, mas "a reforma nada
diz sobre isso."
O teste definitivo sobre a
intensidade desse apoio a greve geral será feito a partir da manhã de
quarta-feira, 26, quando será aberta a Assembléia Geral da CNBB, em
Aparecida, São Paulo. Elaborada há um ano, a pauta do encontro prevê um
debate sobre Conjuntura Nacional, que irá abrir para espaço para
discussão sobre o dia 28 e seus desdobramentos. Pode-se prever -- o que é
natural num evento desse tipo -- uma ofensiva das lideranças alinhadas
com o governo Temer, que receberá espaço e atenção junto a mídia amiga. O
efeito real sobre as três centenas de bispos que estarão reunidos é bem
menos provável. "O que está sendo feito agora por padres e bispos
reflete o sentimento médio da Igreja hoje," disse ao 247 um médico que
já completou meio século de militância em círculos católicos. Ainda que
provoquem questionamentos internos, as resoluções cotidianas da CNBB não
são decisões tomadas no vazio, mas refletem a postura de seu
Conselho-Geral, com 48 integrantes.
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