Amigo e homem de confiança de Michel Temer, o professor Gaudêncio
Torquato encerra um artigo de hoje na Folha de S. Paulo com uma previsão
sombria.
"Junho de 2017 parece monitorado pelos olhos do Big Brother de
1968," escreveu. A referência é direta. Na sequencia um ambiente de
luta política pelo poder de Estado e mobilização social nas ruas, em 15
de dezembro de 1968 o país mergulhou na treva do AI-5, a pior fase da
pior ditadura de nossa história.
Ninguém precisa confiar nas palavras de um cidadão que tomou parte
ativa no golpe que derrubou Dilma e seguiu exercendo uma influencia
reconhecida nos meses seguintes. É certo que se trata da visão de um
observador interessado na defesa de Temer e em sua permanência no
Planalto.
O problema é que mesmo pessoas de olhar tendencioso podem enxergar
fatos verdadeiros. Estou convencido de que a dissolução em praça
pública do governo Temer coloca a questão do Poder como um assunto
necessário.
O repúdio aos 4 a 3 do TSE, que mobilizou o país de alto a baixo,
mostra que, mesmo preconizada por sábios diversos da oposição, a
estratégia de deixar Temer sangrar até 2018 convence cada vez menos.
Se a sobrevivência de Temer até o final de 2018 parece pouco
provável, a pergunta real é: no colo de quem vai cair a faixa
presidencial que ele nunca teve o direito de colocar no peito?
Este é o ponto e aqui entra o Big Brother -- onipresente.
Se o conjunto das forças políticas tivesse assumido uma postura
disciplinada e paciente, à espera do calendário eleitoral, a situação
seria outra. Não é o caso, sabemos todos. A disputa é agora.
A postura de setores da elite jurídica do Estado, que hoje tem a iniciativa, mostra uma atuação em duas camadas geológicas.
Na superfície, através do PGR Rodrigo Janot -- cujo mandato se
encerra dentro de dois meses e meio -- o Ministério Publico está em
ofensiva aberta contra Temer, a partir de medidas que, levadas a
efeito, terminarão por arrancar o presidente do Planalto. Simples
assim.
O PSDB cuida da coreografia, fazendo o papel de João Bobo para não
dar na vista. Demais interessados na cadeira de Temer fingem que nada
têm a ver com isso.
O mais importante ocorre de forma encoberta. Apesar do clamor de
mais de 80% dos brasileiros, não se dá nenhum passo para encaminhar uma
sucessão por eleição direta. É impressionante.
Diante da pergunta ("o que fazer caso a saída de Temer se
transforme numa festa popular?") a resposta tem sido um silencio.
Sintomático. Perigoso.
Aqui entra o Big Brother. O objetivo é confrontar a vontade
popular e garantir por todos os meios -- inclusive com sacrifício de
liberdades e direitos -- o programa de reformas econômicas a que Michel
Temer deu início mas tem se mostrado incapaz de seguir adiante com a
eficiência desejada por seus patrocinadores.
De olho em 2018 -- cuja permanência no calendário de fatos reais
parece menos assegurado do que se costuma imaginar -- o Big Brother
trabalha contra qualquer possibilidade de retorno a situação anterior,
quando se tentava ampliar as base de um embrião de estado de bem-estar
social. Nesta paisagem -- é bom repetir -- o alvo é Lula e o projeto que
representa, com todos os limites e imperfeições que é preciso apontar.
Do ponto de vista dos adversários, o simples risco de um "Volta,
Lula" é insuportável. Igual a ameaça de um "Volta, JK" em 1965, que
unificou os últimos batalhões civis do golpe do ano anterior -- na
época, o moderado Juscelino fazia parte do conjunto de possibilidades
que o bloco civil-militar considerava inaceitável e tratou de cortar
seus direitos 60 dias depois do golpe.
Qualquer que seja a preferência política e os compromissos
ideológicos de seus dirigentes -- vamos admitir a boa intenção de pelo
menos uma parte deles -- o instrumento essencial do Big Brother de
2017 é a Lava Jato e seus delatores de casaca e cartola.
Mesmo o Supremo foi atingido e encontra-se em posição de fraqueza
quando se verifica que o relator serviu-se de um lobista da JBS.
O dedo delator dos grandes corruptores da República colocou de pé
um sistema de terror sem dissimulação. Eles apontam quem deve ser
eliminado, quem vai sobreviver, quem vai ser tolerado, quem pode ser
salvo em companhia de criminosos arrependidos e agora premiados.
O caminho até aqui seguiu um curso que não era inevitável mas logo
se mostrou previsível: investigações necessárias contra a corrupção se
transformaram em ataques a democracia.
Como um inseto peçonhento, inocula-se um veneno que, pouco a
pouco, domina o organismo de suas vítimas. Afeta o raciocínio, paralisa
os músculos. Deixa um país inteiro prostrado, com a visão
particularmente afetada e distorcida sobre si mesmo, o que dificulta
escolhas adequadas.
É assim que, no país que abriga a mais ampla mobilização
jurídica-policial-midiática do planeta, sem freios de nenhuma espécie,
vigora a crença de que há um (no sentido de único) Problema Nacional
que se resume na palavra Corrupção. Ilusão absoluta e perigosa.
Não explica a oitava economia do mundo, nem a liderança regional,
nem um parque industrial até hoje respeitável, nem um mercado consumir
alvo de cobiça mundial. Muito menos, uma população batalhadora e
generosa. Também ajuda a esconder a pobreza, a desigualdade, a falta de
oportunidades. A função política do monstro Corrupção é justificar e
ampliar o Estado policial. É sua lógica, a partir do Problema Nacional.
Mas s grande questão do país no Brasil de junho de 2017 é
democracia. Esta é a doença que apodrece o país e corrói a situação
política e impede a abertura de saídas. Sua origem é o golpe de Michel
Temer. Sua sobrevivência é responsabilidade daqueles que o apoiam e
agora se debruçam sobre seus restos vitais. Hienas da tragédia de um
país.
Como a ausência de antibiótico num organismo infeccionado, a falta
da voz do povo na tomada de decisões, nas escolhas de cada dia e também
dos grandes rumos da historia enfraquece o Estado e sabota no futuro.
Transforma a cena política num teatro de marionetes desorientados.
As diretas são para ontem. A sobrevivência de um governo
ilegítimo, encolhido em seu bunker, inspira ações irresponsáveis e
sonhos autoritários que -- por enquanto -- tentam manter as aparências.
Liberadas do único polo de gravidade legítimo -- a soberania
popular -- as autoridades ficam de mãos livres para operar conforme seus
interesses e capacidades. A luta política -- saudável em outras
circunstâncias -- se transforma em briga de rua e salve-se quem puder,
Big Brother.
Sem fingimento, é aqui que estamos.
Para voltar a 1968 e ao AI-5. Enquanto o conjunto do ministério de
Costa e Silva se ajoelhava perante a ditadura dentro da ditadura, que
eliminou os resquícios de liberdades públicas que haviam sobrevivido ao
golpe de 64, a única voz discordante foi de Pedro Aleixo. Não poderia
haver cidadão tão comprometido. Era o vice de Costa e Silva, selecionado
justamente por se acreditar que tinha a espinha dorsal flexível, capaz
de envergonhar a dignidade humana. Num teste decisivo da própria
biografia, Pedro Aleixo foi o único voto sensato e corajoso contra o
AI-5 e acabou repreendido pelos colegas, que perguntavam se não confiava
na capacidade de Costa e Silva para evitar desmandos e abusos
indesejáveis. "Não tenho nenhum receio em relação ao presidente, tenho
medo do guarda da esquina."
Mas uma diferença de 2107 em relação a 1968 deve ser sublinhada. A
fatia mais brilhante, generosa e coerente da geração de 68, que naquela
época realizou inesquecíveis manifestações de massa contra o regime
militar, engajou-se em organizações que decidiram enfrentar uma ditadura
de armas na mão.
Mesmo exibindo coragem e heroísmo numa luta desigual, contra um
adversário que torturava e assassinava impunemente, acabaram vencidos no
plano militar e político.
Em 2017, a resistência se faz com base na democracia. É um
movimento radical no objetivo -- garantir a democracia -- e pacífico nos
métodos. Esta é a força da resistência ao Big Brother.
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