PT pode renascer na luta do povo

Ricardo Stuckert 
Após um prolongado período de acomodação com as próprias fraquezas, num processo que terminou no esmagamento ocorrido nas eleições de domingo último, cresce dentro do Partido dos Trabalhadores a convicção de que sua sobrevivência como partido irá depender de um fator principal – a disposição de lutar com todas as forças para se unir às mobilizações populares destinadas a enfrentar a mais profunda ofensiva conservadora em curso no país desde o golpe militar de 1964.
Abandonado por uma massa considerável dos eleitores que garantiram quatro vitórias consecutivas em eleições presidenciais, mas deixaram o PT num remoto 10º lugar na lista dos mais votados em 2016, não parece haver outro caminho no horizonte, como se aprende pelo histórico de países e partidos operários com um histórico semelhante, a exemplo do PSOE espanhol, os socialistas franceses e os trabalhistas ingleses.
A experiência acumulada em 35 anos de história do próprio PT, que envolve combates vitoriosos tanto no período da ditadura militar, como depois, mostra que essa resistência pode trazer frutos, impedindo prejuízos maiores para a maioria dos brasileiros, única forma de se assegurar a sobrevivência de um partido cuja importância pode ser resumida a suas ligações com os trabalhadores e a maioria da sociedade brasileira. A condição é que se tenha clareza política sobre as metas que devem ser alcançadas, e disposição para enfrentar contradições, dificuldades e mesmo sacrifícios quando se trava uma disputa em condições desfavoráveis. Num momento de definição, é preciso saber o caminho a seguir. Afirmar-se como um partido popular, de oposição a um governo de restauração dos programas de Estado Mínimo. Ou buscar uma conciliação através do cretinismo parlamentar, onde as ilusões – cada vez menores – dos eleitores são negociadas por emendas destinadas a comprar o silencio e apaziguamento de quem deveria estar à frente da luta.
Do ponto de vista dos brasileiros, não é difícil encontrar o caminho a seguir. Em 1979, em pleno regime militar, o Planalto foi forçado a modificar um projeto de anistia aos presos políticos que deixava de fora quem havia participado de ações armadas em função da resistência de movimentos sociais -- pouco depois muitos de seus integrantes fundariam o PT -- combinados com a ação de uma bancada pequena mas corajosa de parlamentares. Em 1983, após uma memorável coleção de manobras parlamentares, a Câmara se uniu à luta dos trabalhadores   e derrubou o projeto 2065, que pretendia institucionalizar perdas inflacionárias nos salários. A sobrevivência da Petrobras como empresa estatal, até os dias de hoje, é fruto dessa resistência que soube apoiar uma forte mobilização popular com uma negociação dura.
A luta dos petroleiros contra a privatização da empresa, no governo Fernando Henrique Cardoso, colocou em risco um conjunto de projetos importantes do Planalto, inclusive o direito a reeleição. Após dois anos de luta na rua e debate nos gabinetes, a reeleição passou mas a Petrobras, mesmo alterada em seus estatutos, seguiu em mãos do Estado brasileiro.
No mundo parlamentar, esta postura envolve um comportamento de quem tem consciência de que não se deve ter receio de assegurar a defesa de interesses da maioria dos brasileiros que, pelas razões que todos conhecemos muito bem, não tem sua representada expressa em plenário.
Isso implica em evitar assinatura da lista de presença para evitar o andamento dos trabalhos; exigir a leitura da ata do dia anterior; fazer uso da palavra sempre que possível e assim por diante. Já houve caso em que, sem direito a palavra, 50 parlamentares interrompiam manobras com uso de apitos, que impediam os debates em plenário.
Estamos falando de instrumentos legítimos da disputa parlamentar, expressão de um esforço desesperado de preservar um programa de governo e uma visão de país que recebeu o referendo das urnas. Têm a legitimidade da democracia, ao contrário de manobras semelhantes conduzidas por Eduardo Cunha para abrir caminho ao golpe de Estado. 
A gravidade da situação atual não pode ser minimizada. Ontem, 72 horas depois das eleições para as 5500 prefeituras do país, ocorreram derrotas importantes. Por 202 votos a 101, o Congresso aprovou a abertura da operação da exploração das reservas de pré-sal para empresas estrangeiras, uma decisão cuja gravidade foi bem explicada neste mesmo espaço em julho, numa entrevista exclusiva do geólogo Guilherme Estrella, líder da equipe que descobriu imensas áreas de petróleo e gás a mais de 2000 metros de profundidade da costa brasileira. Disse ele:
-- O pré-sal é a última fronteira geológica disponível para a produção de óleo e gás. A empresa que opera suas atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa por sua mão. Define a engenharia de projetos e a operação de grandes sistemas de produção submarina. Também toma decisões sobre o trabalho no fundo do mar, a coleta e transporte de unidades flutuantes. São dimensões de amplo espectro que representam o grande salto para o futuro.

No mesmo dia, a menos de 100 metros de distância, o plenário do Supremo Tribunal Federal cancelou, pela apertada margem de 6 votos a 5, uma garantia prevista no artigo 5 da Constituição, onde se ensina que “ninguém será considerado culpado antes do transito em julgado de sentença penal condenatória”. 
A decisão costuma ser apresentada como uma vitória contra a impunidade que bons advogados asseguram aos ricos e poderosos. Na verdade, representa – para ricos, pobres e remediados -- uma derrota do princípio da presunção da inocência, tradicional instrumento do cidadão comum para se defender dos poderes do Estado, que mesmo nas mais belas democracias podem assumir feições tirânicas, quando menos se espera, como sabemos todos.  A partir da noção de que toda pessoa é inocente até que se prove o contrário, a Constituição  protege o bem maior da existência sob o Estado Democrático de Direito – a liberdade. Agora, segundo o novo entendimento do Supremo, basta uma segunda condenação para que o réu seja conduzido à prisão.
Numa argumentação que envergonha qualquer estudioso da demagogia aplicada ao Direito, tenta-se dar ares de legalidade ao tratamento abusivo a que é submetida uma parcela imensa de nossa população carcerária, mantida atrás das grades por anos a fio sem ter a menor oportunidade de apresentar seus argumentos perante um tribunal de verdade. No plano histórico, a decisão representa um retrocesso, pois a democracia sempre perde quando direitos individuais são abandonados com o argumento de que é preciso ampliar a capacidade de punição do Estado.
No plano político, é o caminho aberto para uma justiça de exceção, no qual o projeto de neutralização política – e mesmo prisão – de Lula é um ponto visível no horizonte. No mesmo processo, o Congresso está sendo pressionado a aprovar um programa de pontos de combate a corrupção que inclui a utilização de provas ilícitas, cujo uso é vetado pela Constituição, pela memória deixada pela tortura do regime militar.  
A conta que Michel Temer precisa pagar por ter assumido o poder sem a legitimidade de um crime de responsabilidade que pudesse justificar o afastamento de uma presidente eleita deve ser saldada em prazo curto, como uma operação com pagamento a vista. O que se teme é uma inevitável reconstrução da resistência, sinalizada pelos índices de reprovação popular de Temer, que em apenas quatro meses no Planalto se tornaram superiores aos da antecessora.
O risco de Temer é ser afastado do cargo antes do fim do mandato, como sugerem comentaristas impacientes e despudorados, deixando no ar a lembrança de que depois de 1 de janeiro de 2017 um eventual substituto de será escolhido entre os amigos do Congresso, e não pelo voto popular, o que pode facilitar muitas coisas. Como estímulo, Temer é sempre aplaudido quando diz que não tem receio de tomar "medidas impopulares". Também é aconselhado, sempre, a não pensar em reeleição.  
Na pauta, se encontram a Reforma da Previdência, a esterilização da CLT e, acima de tudo, a PEC 241. Prevendo um teto para os gastos públicos com base na inflação do ano anterior, em nome de palavras pomposas sobre austeridade e controle da inflação, a PEC não passa de um programa de destruição permanente e regular da capacidade de intervenção do Estado brasileiro – potencial que nem a ditadura militar foi capaz de negar – e quebra do embrião de Estado de bem-estar construído num esforço de décadas. Seu horizonte real é uma economia de crescimento baixo, num país onde a desigualdade imensa não poderá ser vencida sem investimentos altos e programas sociais à altura.       
Em separado, cada uma dessas decisões constitui uma tragédia. Em conjunto, representam a retomada de um projeto histórico de controle de riqueza e pilhagem da economia global pelas potenciais imperiais, ensaiado e parcialmente derrotado ao longo das últimas quatro décadas, cuja noção essencial são os programas de Estado Mínimo. Capazes de usar denominações variadas ao longo do período – a mais duradoura tinha o apelido de “Consenso de Washington” – sua penetração ocorreu de forma variada de país para país, num processo no qual a capacidade de resistência popular interna cumpriu um papel essencial para defender a soberania e os direitos de cada um.  No Brasil, a história assumiu um curso peculiar. Enquanto em outros lugares ocorria a destruição de direitos, aqui eles puderam ser preservados e mesmo ampliados, com todos os limites e falhas que podem ser apontados, num período que se inicia com a Constituição de 1988 e chega ao 31 de agosto de 2016.  
Isso aconteceu porque a luta política dos anos 80 – cuja prioridade era derrotar a ditadura militar – não se separou da luta social, do combate a desigualdade e pela distribuição de renda. O projeto 2063 era a versão 1983 do ajuste que o governo Temer pretende promover. O plano da ditadura era atropelar o regimento interno, que determinava que a votação tivesse início pela Câmara, onde a oposição era maioria. Abrindo os debates no senado, o Planalto imaginava que poderia enterrar o projeto logo de saída, transferindo a primeira discussão para o Senado, aonde possuía mais votos. O cálculo parecia correto. Só não levou em conta a disposição de luta dos assalariados, que ocuparam o Congresso e percorriam o país inteiro em protestos. Pressionado pelo regime para encaminhar a manobra, o presidente do Senado, Nilo Coelho, homem de 64 e conservador convicto, foi ao microfone e declarou que antes de pertencer a Arena, partido da ditadura, era presidente do Senado, instituição da República  – e não faltaria a seu dever.
Muito mais do que uma simples medida isolada, a recusa do decreto 2063 teve um efeito duradouro e amplo. Inviabilizou a reconstrução da política econômica da ditadura com base no arrocho salarial, dando novo oxigênio aos movimentos pela derrubada do regime. Um ano depois da derrota na política econômica de 1983, a ditadura viu-se diante da maior mobilização democrática da história, pelas diretas já.
O ensinamento que fica para hoje é simples. A mesma luta popular que permitiu a saída da ditadura pode abrir caminho para a derrota do governo Temer e a preservação de direitos conquistados e garantias fundamentais.
Este é a opção que pode permitir a reconstrução do Partido dos Trabalhadores.
Para repetir um pensamento muito comum nas épocas de grandes mudanças, não custa repetir: para ajudar nas mudanças que o país precisa, o PT deve, também, começar a mudar a si próprio. Deve, em primeiro lugar, se reconhecer como um partido do movimento operário, expressão da luta social e das necessidades dos mais humildes e explorados.

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