Após um prolongado período de acomodação
com as próprias fraquezas, num processo que terminou no esmagamento
ocorrido nas eleições de domingo último, cresce dentro do Partido dos
Trabalhadores a convicção de que sua sobrevivência como partido irá
depender de um fator principal – a disposição de lutar com todas as
forças para se unir às mobilizações populares destinadas a enfrentar a
mais profunda ofensiva conservadora em curso no país desde o golpe
militar de 1964.
Abandonado por uma massa considerável dos
eleitores que garantiram quatro vitórias consecutivas em eleições
presidenciais, mas deixaram o PT num remoto 10º lugar na lista dos mais
votados em 2016, não parece haver outro caminho no horizonte, como se
aprende pelo histórico de países e partidos operários com um histórico
semelhante, a exemplo do PSOE espanhol, os socialistas franceses e os
trabalhistas ingleses.
A experiência acumulada em 35 anos de
história do próprio PT, que envolve combates vitoriosos tanto no período
da ditadura militar, como depois, mostra que essa resistência pode
trazer frutos, impedindo prejuízos maiores para a maioria dos
brasileiros, única forma de se assegurar a sobrevivência de um partido
cuja importância pode ser resumida a suas ligações com os trabalhadores e
a maioria da sociedade brasileira. A condição é que se tenha clareza
política sobre as metas que devem ser alcançadas, e disposição para
enfrentar contradições, dificuldades e mesmo sacrifícios quando se trava
uma disputa em condições desfavoráveis. Num momento de definição, é
preciso saber o caminho a seguir. Afirmar-se como um partido popular, de
oposição a um governo de restauração dos programas de Estado Mínimo. Ou
buscar uma conciliação através do cretinismo parlamentar, onde as
ilusões – cada vez menores – dos eleitores são negociadas por emendas
destinadas a comprar o silencio e apaziguamento de quem deveria estar à
frente da luta.
Do ponto de vista dos brasileiros, não é
difícil encontrar o caminho a seguir. Em 1979, em pleno regime militar, o
Planalto foi forçado a modificar um projeto de anistia aos presos
políticos que deixava de fora quem havia participado de ações armadas em
função da resistência de movimentos sociais -- pouco depois muitos de
seus integrantes fundariam o PT -- combinados com a ação de uma bancada
pequena mas corajosa de parlamentares. Em 1983, após uma memorável
coleção de manobras parlamentares, a Câmara se uniu à luta dos
trabalhadores e derrubou o projeto 2065, que pretendia
institucionalizar perdas inflacionárias nos salários. A sobrevivência da
Petrobras como empresa estatal, até os dias de hoje, é fruto dessa
resistência que soube apoiar uma forte mobilização popular com uma
negociação dura.
A luta dos petroleiros contra a
privatização da empresa, no governo Fernando Henrique Cardoso, colocou
em risco um conjunto de projetos importantes do Planalto, inclusive o
direito a reeleição. Após dois anos de luta na rua e debate nos
gabinetes, a reeleição passou mas a Petrobras, mesmo alterada em seus
estatutos, seguiu em mãos do Estado brasileiro.
No mundo parlamentar, esta postura envolve
um comportamento de quem tem consciência de que não se deve ter receio
de assegurar a defesa de interesses da maioria dos brasileiros que,
pelas razões que todos conhecemos muito bem, não tem sua representada
expressa em plenário.
Isso implica em evitar assinatura da lista
de presença para evitar o andamento dos trabalhos; exigir a leitura da
ata do dia anterior; fazer uso da palavra sempre que possível e assim
por diante. Já houve caso em que, sem direito a palavra, 50
parlamentares interrompiam manobras com uso de apitos, que impediam os
debates em plenário.
Estamos falando de instrumentos legítimos
da disputa parlamentar, expressão de um esforço desesperado de preservar
um programa de governo e uma visão de país que recebeu o referendo das
urnas. Têm a legitimidade da democracia, ao contrário de manobras
semelhantes conduzidas por Eduardo Cunha para abrir caminho ao golpe de
Estado.
A gravidade da situação atual não pode ser
minimizada. Ontem, 72 horas depois das eleições para as 5500 prefeituras
do país, ocorreram derrotas importantes. Por 202 votos a 101, o
Congresso aprovou a abertura da operação da exploração das reservas de
pré-sal para empresas estrangeiras, uma decisão cuja gravidade foi bem
explicada neste mesmo espaço em julho, numa entrevista exclusiva do
geólogo Guilherme Estrella, líder da equipe que descobriu imensas áreas
de petróleo e gás a mais de 2000 metros de profundidade da costa
brasileira. Disse ele:
-- O pré-sal é a última fronteira geológica
disponível para a produção de óleo e gás. A empresa que opera suas
atividades será imensamente beneficiada, pois tudo passa por sua mão.
Define a engenharia de projetos e a operação de grandes sistemas de
produção submarina. Também toma decisões sobre o trabalho no fundo do
mar, a coleta e transporte de unidades flutuantes. São dimensões de
amplo espectro que representam o grande salto para o futuro.
No mesmo dia, a menos de 100 metros de
distância, o plenário do Supremo Tribunal Federal cancelou, pela
apertada margem de 6 votos a 5, uma garantia prevista no artigo 5 da
Constituição, onde se ensina que “ninguém será considerado culpado antes
do transito em julgado de sentença penal condenatória”.
A decisão costuma ser apresentada como uma
vitória contra a impunidade que bons advogados asseguram aos ricos e
poderosos. Na verdade, representa – para ricos, pobres e remediados --
uma derrota do princípio da presunção da inocência, tradicional
instrumento do cidadão comum para se defender dos poderes do Estado, que
mesmo nas mais belas democracias podem assumir feições tirânicas,
quando menos se espera, como sabemos todos. A partir da noção de que
toda pessoa é inocente até que se prove o contrário, a Constituição
protege o bem maior da existência sob o Estado Democrático de Direito –
a liberdade. Agora, segundo o novo entendimento do Supremo, basta uma
segunda condenação para que o réu seja conduzido à prisão.
Numa argumentação que envergonha qualquer
estudioso da demagogia aplicada ao Direito, tenta-se dar ares de
legalidade ao tratamento abusivo a que é submetida uma parcela imensa de
nossa população carcerária, mantida atrás das grades por anos a fio sem
ter a menor oportunidade de apresentar seus argumentos perante um
tribunal de verdade. No plano histórico, a decisão representa um
retrocesso, pois a democracia sempre perde quando direitos individuais
são abandonados com o argumento de que é preciso ampliar a capacidade de
punição do Estado.
No plano político, é o caminho aberto para
uma justiça de exceção, no qual o projeto de neutralização política – e
mesmo prisão – de Lula é um ponto visível no horizonte. No mesmo
processo, o Congresso está sendo pressionado a aprovar um programa de
pontos de combate a corrupção que inclui a utilização de provas
ilícitas, cujo uso é vetado pela Constituição, pela memória deixada pela
tortura do regime militar.
A conta que Michel Temer precisa pagar por
ter assumido o poder sem a legitimidade de um crime de responsabilidade
que pudesse justificar o afastamento de uma presidente eleita deve ser
saldada em prazo curto, como uma operação com pagamento a vista. O que
se teme é uma inevitável reconstrução da resistência, sinalizada pelos
índices de reprovação popular de Temer, que em apenas quatro meses no
Planalto se tornaram superiores aos da antecessora.
O risco de Temer é ser afastado do cargo
antes do fim do mandato, como sugerem comentaristas impacientes e
despudorados, deixando no ar a lembrança de que depois de 1 de janeiro
de 2017 um eventual substituto de será escolhido entre os amigos do
Congresso, e não pelo voto popular, o que pode facilitar muitas coisas.
Como estímulo, Temer é sempre aplaudido quando diz que não tem receio de
tomar "medidas impopulares". Também é aconselhado, sempre, a não pensar
em reeleição.
Na pauta, se encontram a Reforma da
Previdência, a esterilização da CLT e, acima de tudo, a PEC 241.
Prevendo um teto para os gastos públicos com base na inflação do ano
anterior, em nome de palavras pomposas sobre austeridade e controle da
inflação, a PEC não passa de um programa de destruição permanente e
regular da capacidade de intervenção do Estado brasileiro – potencial
que nem a ditadura militar foi capaz de negar – e quebra do embrião de
Estado de bem-estar construído num esforço de décadas. Seu horizonte
real é uma economia de crescimento baixo, num país onde a desigualdade
imensa não poderá ser vencida sem investimentos altos e programas
sociais à altura.
Em separado, cada uma dessas decisões
constitui uma tragédia. Em conjunto, representam a retomada de um
projeto histórico de controle de riqueza e pilhagem da economia global
pelas potenciais imperiais, ensaiado e parcialmente derrotado ao longo
das últimas quatro décadas, cuja noção essencial são os programas de
Estado Mínimo. Capazes de usar denominações variadas ao longo do período
– a mais duradoura tinha o apelido de “Consenso de Washington” – sua
penetração ocorreu de forma variada de país para país, num processo no
qual a capacidade de resistência popular interna cumpriu um papel
essencial para defender a soberania e os direitos de cada um. No
Brasil, a história assumiu um curso peculiar. Enquanto em outros lugares
ocorria a destruição de direitos, aqui eles puderam ser preservados e
mesmo ampliados, com todos os limites e falhas que podem ser apontados,
num período que se inicia com a Constituição de 1988 e chega ao 31 de
agosto de 2016.
Isso aconteceu porque a luta política dos
anos 80 – cuja prioridade era derrotar a ditadura militar – não se
separou da luta social, do combate a desigualdade e pela distribuição de
renda. O projeto 2063 era a versão 1983 do ajuste que o governo Temer
pretende promover. O plano da ditadura era atropelar o regimento
interno, que determinava que a votação tivesse início pela Câmara, onde a
oposição era maioria. Abrindo os debates no senado, o Planalto
imaginava que poderia enterrar o projeto logo de saída, transferindo a
primeira discussão para o Senado, aonde possuía mais votos. O cálculo
parecia correto. Só não levou em conta a disposição de luta dos
assalariados, que ocuparam o Congresso e percorriam o país inteiro em
protestos. Pressionado pelo regime para encaminhar a manobra, o
presidente do Senado, Nilo Coelho, homem de 64 e conservador convicto,
foi ao microfone e declarou que antes de pertencer a Arena, partido da
ditadura, era presidente do Senado, instituição da República – e não
faltaria a seu dever.
Muito mais do que uma simples medida
isolada, a recusa do decreto 2063 teve um efeito duradouro e amplo.
Inviabilizou a reconstrução da política econômica da ditadura com base
no arrocho salarial, dando novo oxigênio aos movimentos pela derrubada
do regime. Um ano depois da derrota na política econômica de 1983, a
ditadura viu-se diante da maior mobilização democrática da história,
pelas diretas já.
O ensinamento que fica para hoje é simples.
A mesma luta popular que permitiu a saída da ditadura pode abrir
caminho para a derrota do governo Temer e a preservação de direitos
conquistados e garantias fundamentais.
Este é a opção que pode permitir a reconstrução do Partido dos Trabalhadores.
Para repetir um pensamento muito comum nas
épocas de grandes mudanças, não custa repetir: para ajudar nas mudanças
que o país precisa, o PT deve, também, começar a mudar a si próprio.
Deve, em primeiro lugar, se reconhecer como um partido do movimento
operário, expressão da luta social e das necessidades dos mais humildes e
explorados.
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