Ao aprovar uma nova regra para a
eleição direta para Presidente da República, a Comissão de Constituição e
Justiça do Senado tomou uma providência que não pode ser diminuída nem
exagerada num país que enfrenta uma situação duas vezes sufocante.
Se Michel Temer até pode ser
derrubado em função da rejeição absoluta da uma maioria de brasileiros e
brasileiros, num universo de desastres que soma denúncias da JBS, a
pior crise econômica da nossa história e uma mobilização popular
crescente, a manter-se a legislação atual a troca de presidentes pode
representar um golpe dentro do golpe. Isso porque o artigo 81 da
Constituição prevê eleições indiretas para substituir um presidente
afastado na segunda metade do mandato.
A permuta seria descarada e sem anestesia: entrega-se um presidente mas mantém-se um programa de reformas que destrói o país.
Com todas as distâncias guardadas,
pode-se assistir, 195 depois, a uma nova demonstração de astúcia de
nossa classe dominante, uma repetição do teatro da história brasileira
desde a Independência, no distante 1822, quando dom João VI deu o
seguinte conselho a dom Pedro: "põe a coroa sobre tua cabeça antes que
um aventureiro dela lance mão."
Como uma pequena luz no fim do
túnel, a votação da CCJ pode abrir uma brecha institucional para se
resolver essa situação. Numa decisão que ainda precisa ser aprovada pelo
plenário do Senado -- por maioria de três quintos, em duas votações -- e
ainda precisará atravessar o mesmo ritual, na Câmara de Deputados,
aprovou-se que ocorrem eleições diretas para presidentes afastados até o
final do terceiro ano de mandato. Ainda que todas essas votações venham
a se realizar, atingindo esse placar sempre difícil, é preciso prestar
atenção num prazo curto. Conforme a Constituição, uma mudança nas
regras eleitorais precisa ser aprovada com um ano de antecedência para
entrar em vigor.
Baseada num projeto do Senador José
Reguffe, do Distrito Federal, relatado por Lindberg Farias, a proposta
foi aprovada por unanimidade na Comissão, contagem que representa um
duplo sinal político.
A decisão, por um lado, confirma a
dificuldade de nossos políticos -- mesmo aqueles que ainda carregam
Michel Temer nas costas -- em colocar-se abertamente como adversários de
uma proposta que protege os direitos democráticos dos brasileiros. Do
ponto de vista da bancada alinhada com Temer, foi uma demagogia de baixo
risco, porém. Seus integrantes jogaram para a plateia mas poderão
sabotar o projeto mais tarde, quando e se for levado a plenário. A
mensagem principal foi registrada, porém.
Alargou-se o caminho que reforça a
mobilização popular pelo fim do governo Temer e pelas Diretas-Já. Toda
pessoa que já participou de atos públicos nas últimas semanas entendeu o
retrato da situação. Está claro, acima de qualquer dúvida razoável, que
uma imensa maioria dos brasileiros quer o fim do governo Temer e quer
diretas -- mas não enxerga um caminho para chegar lá. A constatação de
que a eleição não está prevista na Constituição a partir da segunda
metade do mandato tem sido usada como principal argumento para se criar o
desânimo e a falta de perspectiva. A proposta aprovada -- em comissão, é
sempre bom lembrar -- desata um primeiro nó, o que explica a
comemoração de Lindberg: "foi uma vitória espetacular."
Na defensiva, receosa da reação dos
eleitores, a bancada governista deu uma prova de que a resistência
enfrenta dificuldades do lado de lá e decidiu baixar a guarda -- pelo
menos na hora de tirar fotografia. Não foi, de qualquer modo, um ponto
fora do gráfico, mas uma decisão coerente com a paisagem mais ampla de
colapso do governo Temer.
A votação na CCJ ocorreu 24 horas
depois que o Planalto foi obrigado a encarar um vexame junto ao grande
empresariado do país, aquele que, desde as eleições de 2014 mostrou-se
como a principal força de sustentação conspiração que empossou Temer
após um golpe sem crime de responsabilidade demonstrado.
Previsto para funcionar como a
clássica "virada de jogo" que os estrategistas de marketing gostam de
vender em horas de extrema dificuldade, um jantar de Michel Temer e da
equipe econômica para grandes empresários, num grande hotel de São
Paulo, encerrou-se num vexame típico daquelas horas em que os viajantes
perceberam que o Titanic pode afundar. O jantar "chamou a atenção pela
baixa adesão de representantes de empresas nacionais e a ausência de
banqueiros de peso," informa o Valor Econômico.
Não é uma ausência qualquer. Envolve
os donos do dinheiro grosso que montaram a bancada milionária de
Eduardo Cunha e Michel Temer, passando por quem mais você puder
imaginar, inclusive Aécio Neves, que agora corre para não ir para a
cadeia depois de tentar impugnar a vitória de Dilma com ajuda da Lava
Jato e denúncias de corrupção eleitoral.
Começa a ser montado, assim, o
cenário de uma mudança política que faz parte das tradições brasileiras
desde 1822, de fazer arranjos às costas do povo. É um cuidado ideal,
quando se trata de reforçar uma posição colonial, que sempre pode ser
ameaçada pela mobilização dos nativos.
Quase dois séculos depois, a indireta tem a mão de dom João VI.
Alguma dúvida?
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