A Quinta República francesa dissolveu-se no ar das urnas. Pela
primeira vez desde sua criação, em 1968, por De Gaulle, os dois
principais partidos, o Socialista e dos Republicanos, não irão para o
segundo turno. Em seu lugar estarão a ultradireitista Le Pen e o
aventureiro da "nova política", o direitista Macron, que fará mais do
mesmo, se eleito.
A "nova política" é sempre a mesma coisa em qualquer lugar. Afirma
ser "nova" e não ser "nem de direita e nem de esquerda". Na realidade, a "nova política" é apenas a velha direita com novo marketing.
Entretanto, amealha incautos em muitos países, inclusive na França.
Mas o que surpreende é a rapidez e a intensidade da derrocada desses
partidos tradicionais. Em 2007, tais partidos conseguiram 57% dos votos
no primeiro turno. Em 2012, conseguiram 56%. Mas, agora, só conseguiram
26%. Patética foi a performance de Hamon, sucessor oficial de Hollande:
não passou de 6%. O Partido Socialista francês se transformou num Pasok,
aquele partido "socialista" grego que, por apoiar o austericídio
econômico, cometeu suicídio político.
Entretanto, a crise dos partidos e dos sistemas de representação não é
apenas francesa, é praticamente geral nas democracias. Nos EUA, Trump,
um outsider de extrema direita, com um discurso feito sob
medida para enganar trabalhadores desempregados, chegou ao poder, para
surpresa de muitos. Na Grã-Bretanha, o Brexit, algo impensável há poucos
anos, foi confirmado em plebiscito. Em toda a Europa, há descrença
crescente na "política" e nos partidos tradicionais. Pululam
aventureiros "apolíticos", "novos políticos", novos partidos com velhas
ideias e pseudossoluções "técnicas" para problemas políticos.
Essa crise mundial da política é fruto, em grande parte, da crise
econômica mundial. Com efeito, sempre que há uma grande crise econômica,
intensa e persistente como a da atualidade, a democracia e os sistemas
de representação sofrem considerável stress. Nessas
circunstâncias, a capacidade da política de absorver e arbitrar
conflitos, especialmente os conflitos distributivos, inerentes ao
sistema capitalista, se fragiliza ou, em muitos casos, se esvai
completamente.
Na crise dos anos 20 e 30, alguns sistemas políticos europeus
simplesmente implodiram, dando lugar ao fascismo e ao nazismo, que
levaram o mundo à gigantesca tragédia da Segunda Guerra Mundial. Nos
EUA, entretanto, o sistema político foi salvo pelas políticas
anticíclicas de Roosevelt.
Contudo, nesta crise política mundial, há um fator de base, mais
profundo, que vai além da crise econômica. Trata-se do que poderíamos
denominar de a "despolitização da política econômica". Com efeito, desde
a década de 1980 que, em graus variados, os sistemas de representação
política vêm "terceirizando" as decisões relevantes sobre a condução da
economia para o "mercado" e "instituições independentes", como bancos
centrais dominados por grandes interesses financeiros privados.
Criaram-se, desde aquela época, "consensos técnicos" que consagraram,
como racionais, desejáveis e inevitáveis, as políticas neoliberais
amigáveis aos interesses do grande capital, especialmente do grande
capital financeiro. Com isso, as decisões realmente relevantes sobre a
condução das economias e dos países foram excluídas do sistema de
representação e do controle da soberania popular, exercida pelo voto. O "fim da História" apregoado por Francis Fukuyama, representou, na
verdade, o fim da política.
Na Europa e nos EUA, a tradicional alternância entre partidos
tradicionais de centro-esquerda e de centro-direita, deixou de ter
qualquer incidência relevante sobre a política econômica e a vida das
pessoas. Todos reproduziam, e reproduzem, em maior ou menor grau, a
mesmice dos “consensos técnicos” e neoliberais. Na Europa, essa
submissão ideológica das esquerdas tradicionais ao ideário neoliberal
denominou-se "Terceira Via".
Tudo isso resultou no aumento expressivo da desigualdade econômica e
social, num incontido desemprego estrutural, e na "financeirização" e
desregulamentação da acumulação do capital, fatores determinantes da
pior crise mundial desde 1929.
No campo político, essa usurpação do controle da política econômica
pelo voto resultou, em um primeiro momento, num crescente absenteísmo
eleitoral e, agora, na crise, na descrença generalizada na política e na
falta de credibilidade dos partidos e dos sistemas de representação. Os
eleitores percebem que seus votos não fazem qualquer diferença em suas
vidas. Tanto faz votar no partido A, B ou C, ou mesmo não votar. Nada
muda.
A política que não cria reais alternativas de poder não é política, é
apenas simulacro de democracia. É esse vazio político que está na
origem da crise das democracias modernas. Assim, a crise mundial da
política é, na realidade, a crise da falta de política. E a crise dos
sistemas de representação é a crise da falta de representatividade dos
sistemas políticos, que não dão voz efetiva aos votos colhidos.
No Brasil, para complicar, há duas jabuticabas: o golpe parlamentar e a Lava Jato.
O primeiro retirou da soberania popular qualquer controle sobre
quaisquer políticas, não apenas a econômica. Sem um único voto, o
consórcio golpista esta implantando, a toque de caixa, não somente
medidas conjunturais draconianas de ajuste, mas medidas estruturantes,
com efeito de longo prazo, talvez definitivos, em todas as áreas:
educação, saúde, previdência, assistência social, trabalhista, proteção
às minorias, meio ambiente, ciência e tecnologia, energia, política
externa, etc.
Já a segunda retirou a credibilidade de toda a classe política
brasileira e transferiu definitivamente a tomada de decisões do sistema
de representação para um consórcio formado pelo grande capital, a mídia
oligopolizada, procuradores messiânicos e juízes partidarizados.
No mundo inteiro, a superação da crise política e, por consequência,
da crise econômica, passa pela capacidade dos sistemas de representação
recapturarem a prerrogativa de tomar decisões relevantes, efetivas e
inovadoras no campo econômico e, de resto, em todas as áreas. Num
sentido geopolítico, essa superação implica devolver aos Estados
Nacionais a capacidade decisória que fora transferida para o capital
financeiro internacional e consagrada em tratados mundiais e regionais. É
o que o chamado "populismo de direita" vem tentando fazer, porém de
forma inteiramente estéril e equivocada. E, num sentido democrático
maior, essa superação passa por devolver ao voto popular a capacidade
efetiva de decidir os destinos do país.
Em outras palavras, a política de tem de recuperar a capacidade de
criar, como diria Laclau, uma "identidade" popular que consiga que se
antepor, numa disputa democrática real, ao establishment do
capitalismo financeiro global e desregulamentado. Ou, se quiserem, a
política real, como diz Chantal Mouffe, tem de substituir o vazio de
escolhas da "pós-política" e a democracia tem de substituir a "pós-democracia" destituída de efetiva soberania popular.
Pois bem, no Brasil, esse processo de recuperação da política e da
soberania popular, única forma de superar a crise, tem caráter
emergencial e exige duas precondições: 1) realizar eleições e 2) evitar
que "o golpe dentro do golpe" impeça a candidatura popular de Lula.
A experiência recente dos governos do PT mostra que o voto popular e a
política podem fazer diferença. Podem mudar, para melhor, a vida das
pessoas.
Gostem ou não de Lula, do PT e de outros partidos de esquerda, o fato
concreto é o de que a sua pré-candidatura é única que, até agora, se
apresenta com credibilidade suficiente para se antepor à agenda
ultraneoliberal do golpe, a mesma que se esgotou nos EUA e na Europa.
Todas as outras pré-candidaturas, com exceções pouco competitivas, se
apresentam como mera continuidade do golpe. Votar eventualmente em
Alckmin, Dória, Bolsonaro, Marina etc. seria votar nas mesmas políticas
que vem sendo implantadas pelo consórcio golpista, com variações pouco
significativas. Os partidos de direita tradicionais, os "novos"
partidos, as "escolhas técnicas e apolíticas" e o nosso "populismo de
direita" não se constituem em escolhas verdadeiras e alternativas reais
ao que já está sendo concretizado pelo golpe.
Assim, tirar Lula da disputa no "tapetão" da Lava Jato messiânica e
partidarizada representaria transformar as próximas eleições em
simulacro de disputa real. Significaria apostar na "pós-política" contra
a política e na "pós-democracia" contra a democracia. Significaria
apostar, no fundo, no aprofundamento da crise política e democrática.
Lula, mesmo que perca, daria credibilidade à disputa política e
legitimidade, durante algum tempo, a quem ganhar. Já uma disputa sem a
candidatura popular de Lula será mais um desastre para a combalida
democracia brasileira. A cassação de Lula seria a cassação da
democracia.
O golpe e a Lava Jato já esticaram demais a corda das apostas
irracionais. O Brasil está muito próximo de uma ruptura de consequências
imprevisíveis.
O povo, cansado das promessas vazias do golpe, não engolirá uma
cassação de Lula. Melhor, então, engolir o ódio irracional ao candidato
do PT e começar a pensar com o cérebro.
O que restou da democracia brasileira agradece.
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