O país estava às lágrimas com a eliminação da seleção brasileira da Copa do Mundo de 1982, depois de uma inesperada derrota por 3 a 2 para a Itália.
O povo parecia inerte, entregue a uma catarse coletiva pouquíssimas vezes percebida anteriormente.
Algo comparável ao sentimento de frustração que tomou conta do país
após a perda do Mundial de 50, para o Uruguai, num Maracanã lotado.
A crônica de Drummond chamava o povo à realidade.
Conclamava todos a acordarem para a vida e lembrava que, por mais
difícil que parecesse ser, tudo aquilo não passava simplesmente de um
jogo de futebol (Bola e Arte – Fred Soares).
Hoje, 9 de julho de 2014, após a derrota do Brasil para a
Alemanha, vale a pena reler essa joia rara da literatura, uma pérola de
crônica
Carlos Drummond de Andrade
Perder, Ganhar, Viver
Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo
perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos
verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados
inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida;
vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar
qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria;
vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e
queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que
errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos
traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do
coração por motivo do fracasso esportivo;
vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o
surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão
mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria;
vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como
torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia
pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os
candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes
roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral;
vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade
diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo,
inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de
bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e exigido título
de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do
lixo;
vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros
de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti
tanta coisa nas almas…
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos
preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é
afinal instrumento de renovação da vida.
Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o
próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é
arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe
de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos,
que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes.
Perder implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo.
Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível?
Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo
ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os
cálculos mais científicos?
Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas
para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e
inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso?
Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado.
A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a
taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de
competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos
para a quinta.
A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico.
Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou.
Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi
apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou
adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real
contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da
vida.
Não somos invencíveis.
Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a
grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu
gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores,
reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não
utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria
enfático e meio bobo.
Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária.
Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou.
Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?
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